Quinta-feira Histórica: Constituição de 1988 é lembrada como “Carta Cidadã” e marco da redemocratização
Uma semana depois de o Brasil comemorar 37 anos da promulgação da Constituição Federal, a quinta‑feira é um convite à memória histórica. O dia 5 de outubro de 1988 marcou o fim formal de 21 anos de ditadura militar e o início da chamada Nova República. A carta promulgada naquele dia, conhecida como “Constituição Cidadã”, é fruto de um amplo processo de redemocratização: além de enterrar o autoritarismo, estabeleceu as bases jurídicas da democracia brasileira e o catálogo de direitos que todos os cidadãos hoje invocam.
Uma constituinte na ressaca da ditadura
O país saía de duas décadas de regime militar, período em que um Congresso tutelado aprovou, em 1967, uma constituição que permitia censura, cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos. Com a abertura “lenta e gradual” da segunda metade dos anos 1970 e as manifestações das Diretas Já em 1984, a sociedade passou a exigir eleições diretas e uma nova ordem constitucional. A derrota da Emenda Dante de Oliveira no parlamento não desmobilizou a oposição; ao contrário, consolidou o consenso de que era preciso convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.
Em 1986, uma eleição formou o colegiado de 559 congressistas que, a partir de fevereiro de 1987, dedicou‑se a escrever uma Constituição do zero. Os debates envolveram não apenas parlamentares, mas movimentos sociais, sindicatos, associações e “plenários de ativistas”, fazendo do texto final o mais democrático da história brasileira. A missão era dupla: encerrar a ditadura e criar instituições fortes capazes de resistir a crises e de assegurar o exercício dos direitos e liberdades. A tarefa durou 20 meses e foi concluída em clima de euforia.
Quando o deputado Ulysses Guimarães bateu o martelo no plenário em 5 de outubro de 1988, definiu o caráter simbólico daquela carta: “A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: mudar para vencer! Muda, Brasil!”. O discurso deu à Constituição o apelido de “Carta Cidadã” e a transformou em um marco celebratório da democracia.
O texto constitucional: extenso e detalhado
A Constituição de 1988 ganhou fama de ser uma das mais longas e completas do mundo. A redação final tem 250 artigos e dispõe de um Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, totalizando mais de 1.600 normas, enquanto a Constituição dos Estados Unidos tem apenas sete artigos. Essa extensão se deve à opção por tratar de temas que em outros países ficariam para leis complementares; a carta brasileira tenta resolver desde questões econômicas até sociais, visando a que ninguém “fique para trás”.
O texto está organizado em nove títulos, dedicados a princípios fundamentais, direitos e garantias, organização do Estado, organização dos poderes, defesa do Estado e instituições democráticas, tributação, ordem econômica, ordem social e disposições gerais. Logo no primeiro artigo aparecem os princípios da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político.
O Artigo 5º — talvez o mais famoso da carta — declara que todos são iguais perante a lei e garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Com 79 incisos, esse artigo consagra também a igualdade de gênero e racial, a liberdade de expressão e de crença. Por meio de outros dispositivos, a Constituição eleva ao status constitucional direitos sociais como saúde, educação, moradia e trabalho, além de assegurar a proteção ao meio ambiente e aos povos indígenas — aspectos que fazem dela uma das constituições mais progressistas do mundo.
Além dos direitos, a Carta de 1988 organiza o Estado brasileiro: define como as leis são criadas e delega competências aos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), aos entes federados e aos órgãos de controle. Esse arranjo jurídico assegura a separação de poderes e a responsabilização das autoridades, pilares de uma democracia vibrante.
Avanços e lacunas
A Constituição de 1988 entrou em vigor com a promessa de inaugurar uma sociedade “livre, justa e solidária”. Seus avanços são inegáveis: além de restaurar a soberania popular e o voto direto, ela ampliou os direitos individuais e coletivos, incorporou direitos sociais e reconheceu a diversidade cultural e regional do país. O texto contou com ampla participação popular e representou a derrota simbólica do autoritarismo militar. O direito de voto, de reunião, de opinião e de associação, por exemplo, tornaram‑se cláusulas pétreas.
Mas a elaboração da Carta Cidadã não esteve livre de desafios. Os constituintes não tinham um projeto‑base, precisaram redigir uma lei fundamental do zero e enfrentaram forte pressão de grupos organizados. Um exemplo foi a falta de consenso sobre a reforma agrária: apesar da mobilização de movimentos sociais, o tema ficou fora do texto final porque o lobby de proprietários rurais conseguiu barrar as propostas, como lembra o historiador Thomas Skidmore. O resultado é que a concentração de terras permanece como um dos impasses sociais não resolvidos.
Outro ponto é que, apesar de seu detalhismo, a Constituição ainda depende de leis infraconstitucionais para ser aplicada. Levantamentos da Câmara dos Deputados mostram que mais de 160 dispositivos constitucionais continuam à espera de regulamentação, como o imposto sobre grandes fortunas e a greve no serviço público. Especialistas veem nesse silêncio um cálculo político que adia temas sensíveis; enquanto isso, direitos previstos em 1988 permanecem no papel.
Por que lembrar da Carta Cidadã hoje?
Trinta e sete anos depois, a Constituição continua a ser a espinha dorsal do ordenamento jurídico brasileiro. Ela estabelece como o país deve funcionar, define os limites do poder e, principalmente, protege os direitos e deveres dos cidadãos. Nas últimas décadas, suas cláusulas possibilitaram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), do Código de Defesa do Consumidor e de políticas de combate à discriminação. Ao mesmo tempo, a carta serviu de escudo contra tentativas de retrocesso democrático.
Ao relembrar a Carta Cidadã nesta quinta‑feira, não celebramos apenas um documento jurídico. Celebramos a capacidade de uma sociedade de se reerguer após um período de exceção e de se comprometer com um projeto de democracia inclusiva. Manter viva a Constituição significa defender seus princípios e exigir que seus dispositivos saiam do papel para orientar políticas públicas. Como disse Ulysses Guimarães, é preciso “mudar para vencer” — e essa mudança passa por fazer da Constituição de 1988 um instrumento efetivo de cidadania.